CBD aprovado para epilepsias raras: indicações, dose e segurança

CBD aprovado para epilepsias raras: indicações, dose e segurança

A aprovação de medicamentos à base de canabidiol (CBD) para certas formas de epilepsia trouxe esperança para pacientes e suas famílias. Este artigo explora as indicações comprovadas, a compreensão sobre sua dosagem e as considerações importantes de segurança, desmistificando o uso do CBD no contexto médico brasileiro.

Como o CBD teoricamente atua

  • O sistema endocanabinoide (SEC) é uma complexa rede de sinalização presente em nosso corpo, envolvida na regulação de diversas funções fisiológicas, incluindo humor, sono, apetite e, crucialmente, a atividade neuronal. Ele é composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides (produzidos pelo próprio corpo, como anandamida e 2-AG) e enzimas responsáveis pela síntese e degradação dessas substâncias.
  • O CBD, ao contrário do THC, não se liga diretamente aos receptores CB1 e CB2 com alta afinidade, o que explica sua ausência de efeitos psicoativos. Sua ação é mais indireta e multifacetada. Acredita-se que o CBD interaja com uma variedade de outros alvos moleculares, como receptores de serotonina (5-HT1A), receptores vaniloides (TRPV1), receptores órfãos acoplados à proteína G (GPR55) e canais iônicos, modulando a liberação de neurotransmissores e a excitabilidade neuronal. Essa modulação pode resultar em efeitos anticonvulsivantes, anti-inflamatórios e neuroprotetores, contribuindo para a redução da frequência e intensidade das crises epilépticas em quadros específicos.

O que está COMPROVADO

A evidência mais robusta para o uso do CBD em epilepsias raras vem de ensaios clínicos rigorosos, que levaram à aprovação de formulações farmacêuticas de CBD purificado. O medicamento Epidiolex® (nos EUA e Europa) e suas versões genéricas, que contêm CBD de alta pureza, são indicados para o tratamento de convulsões associadas à Síndrome de Lennox-Gastaut (SLG), Síndrome de Dravet (SD) e, mais recentemente, Complexo da Esclerose Tuberosa (CET), em pacientes a partir de dois anos de idade. Estudos pivotais como os publicados no *New England Journal of Medicine* (Devinsky et al., 2017, para Dravet; Devinsky et al., 2018, para Lennox-Gastaut) demonstraram uma redução significativa na frequência de crises convulsivas em comparação com placebo. Na Síndrome de Dravet, a redução das crises convulsivas tônico-clônicas ou atônicas foi de aproximadamente 39% no grupo CBD versus 13% no grupo placebo. Para a Síndrome de Lennox-Gastaut, a redução nas crises de *drop attack* foi de cerca de 40% no grupo CBD contra 17% no placebo. Mais recentemente, para o Complexo da Esclerose Tuberosa, um estudo (Thiele et al., 2021) evidenciou uma redução de 48% nas crises no grupo tratado com CBD. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da RDC 327/2019 e, posteriormente, RDC 660/2022, regulamentou a importação e comercialização de produtos à base de canabinoides para fins medicinais, permitindo que pacientes com prescrição médica tenham acesso a essas formulações, inclusive o CBD purificado para as epilepsias refratárias mencionadas, quando outras terapias falham. É fundamental ressaltar que a eficácia comprovada se refere a formulações específicas e padronizadas, e não necessariamente a todos os produtos de CBD disponíveis no mercado.

O que está EM ESTUDO

  • Embora as indicações para Dravet, Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa sejam bem estabelecidas, a pesquisa com CBD em outras formas de epilepsia e em diferentes contextos neurológicos continua em expansão. Há ensaios clínicos investigando o potencial do CBD como terapia adjuvante em epilepsias focais e generalizadas resistentes a outros tratamentos, bem como em síndromes epilépticas menos comuns.
  • Pesquisadores estão explorando os biomarcadores que poderiam prever a resposta ao CBD, buscando entender melhor quem se beneficiará mais e por quê. Além disso, a combinação de CBD com outros canabinoides e terpenos presentes na planta (o chamado “efeito entourage”) está sendo avaliada para verificar se formulações de extrato de cannabis poderiam oferecer vantagens terapêuticas adicionais ou reduzir doses necessárias, embora a evidência para isso ainda seja preliminar e requer mais investigação em estudos controlados.
  • As limitações atuais incluem a falta de estudos de longo prazo em algumas populações, a necessidade de mais dados comparativos entre CBD e outros anticonvulsivantes, e a dificuldade de padronizar produtos de extrato vegetal de cannabis devido à variabilidade natural da planta.

Segurança e interações

Efeitos adversos

  • Os efeitos colaterais do CBD, embora geralmente leves a moderados, podem incluir sonolência, sedação, diarreia, diminuição do apetite e alterações nos testes de função hepática. Em alguns casos, pode haver fadiga, erupções cutâneas e infecções. É importante que pacientes e cuidadores estejam cientes desses potenciais efeitos e os comuniquem ao médico.

Monitorização hepática

Um dos pontos de atenção mais relevantes no uso do CBD, especialmente em doses mais altas, é o potencial de elevação das enzimas hepáticas, como as transaminases (ALT e AST). Isso é particularmente importante em pacientes que já utilizam outros medicamentos que são metabolizados no fígado ou que possuem alguma condição hepática preexistente. Recomenda-se a monitorização regular da função hepática, especialmente no início do tratamento e após ajustes de dose, conforme orientação médica. O aumento de transaminases geralmente é reversível com a redução da dose ou interrupção do tratamento.

Interações medicamentosas

O CBD é metabolizado no fígado por enzimas do citocromo P450, principalmente CYP3A4 e CYP2C19. Ele também pode inibir essas enzimas, o que significa que pode alterar o metabolismo de outros medicamentos que compartilham essas vias. Isso é especialmente crítico para pacientes com epilepsia que já utilizam outros anticonvulsivantes, como valproato, clobazam, fenitoína e topiramato, pois o CBD pode aumentar os níveis sanguíneos desses fármacos, elevando o risco de efeitos adversos. O médico deve ajustar as doses de forma cuidadosa e monitorar os níveis séricos quando necessário. Outras interações importantes incluem medicamentos anticoagulantes (como a varfarina), imunossupressores e alguns antidepressivos, onde o CBD pode potenciar ou inibir seus efeitos. A comunicação aberta com a equipe médica sobre todos os medicamentos em uso é fundamental para evitar interações perigosas.

Populações especiais

  • **Crianças:** Embora aprovado para epilepsias raras em crianças a partir de 2 anos, o uso em idades ainda menores ou para outras condições em crianças deve ser feito com extrema cautela e sob rigorosa supervisão médica, devido à falta de dados robustos.
  • **Gestantes e lactantes:** Não há dados suficientes sobre a segurança do CBD durante a gravidez e a amamentação. Portanto, seu uso nessas populações não é recomendado, a menos que os benefícios potenciais superem claramente os riscos, o que deve ser uma decisão médica muito ponderada.
  • **Idosos:** Pacientes idosos podem ser mais sensíveis aos efeitos do CBD e podem ter comorbidades ou usar múltiplos medicamentos, aumentando o risco de interações. Recomenda-se iniciar com doses mais baixas e realizar um acompanhamento mais próximo.

Uso prático e qualidade do produto

  • **CBD isolado:** Contém apenas canabidiol puro, sem outros canabinoides, terpenos ou flavonoides da planta. É uma opção para quem busca evitar completamente o THC.
  • **Broad spectrum (amplo espectro):** Contém CBD e outros canabinoides, terpenos e flavonoides, mas o THC é removido ou está presente em níveis indetectáveis. Permite um possível “efeito entourage” sem os riscos do THC.
  • **Full spectrum (espectro completo):** Inclui todos os compostos naturais da planta, incluindo CBD, outros canabinoides (como CBG, CBN), terpenos, flavonoides e uma pequena quantidade de THC (geralmente abaixo de 0,3% no Brasil e em muitos países). Acredita-se que essa combinação potencialize os efeitos terapêuticos (efeito entourage), mas exige atenção à presença de THC, que pode ser um problema para testes antidoping (WADA permite CBD puro, mas não o THC, e produtos full spectrum podem conter traços detectáveis) ou para indivíduos sensíveis.

Regulação no Brasil

No Brasil, a Anvisa regulamentou o tema por meio da RDC 327/2019, que dispõe sobre a fabricação, importação, comercialização, prescrição, dispensação e monitoramento de produtos de Cannabis para fins medicinais. Essa resolução permite a comercialização de produtos à base de CBD com teor de THC de até 0,2% para uso medicinal. Para produtos com teor de THC superior a 0,2% (mas não mais que 0,3%), a comercialização é permitida apenas para pacientes terminais ou que não respondam a tratamentos convencionais, e mediante prescrição específica e justificada. A RDC 660/2022 simplificou a importação de produtos de cannabis por pessoa física, exigindo prescrição médica e laudo/termo de responsabilidade, agilizando o acesso para muitos pacientes. É imperativo que os produtos comercializados no país sigam essas diretrizes e sejam registrados na Anvisa ou importados conforme as regras estabelecidas.

Perguntas frequentes

O CBD cura a epilepsia?

Não, o CBD não cura a epilepsia. Ele é um tratamento adjuvante que pode ajudar a reduzir a frequência e a gravidade das crises em certas síndromes epilépticas refratárias, mas não elimina a condição.

Posso comprar CBD sem receita no Brasil?

Não. No Brasil, produtos à base de CBD para uso medicinal exigem prescrição médica. A comercialização e importação são regulamentadas pela Anvisa.

Qual a diferença entre o CBD medicinal aprovado e os óleos de cannabis vendidos informalmente?

O CBD medicinal aprovado refere-se a produtos farmacêuticos padronizados e testados em ensaios clínicos rigorosos, com controle de qualidade e pureza. Óleos vendidos informalmente podem ter variabilidade na concentração, pureza e podem conter contaminantes, além de não terem a mesma comprovação de eficácia e segurança.

Meu filho(a) com epilepsia pode parar de tomar outros medicamentos se usar CBD?

Não. O CBD é geralmente usado como tratamento adjuvante. Qualquer alteração nos medicamentos anticonvulsivantes deve ser feita exclusivamente sob orientação e monitoramento do médico neurologista, pois a interrupção abrupta pode levar a crises mais graves.

O CBD causa dependência?

O CBD não é considerado uma substância que causa dependência física ou psíquica. Sua natureza não psicoativa e seu perfil de segurança o distinguem de substâncias com potencial de abuso.

Como sei qual dose de CBD é a correta para mim ou para meu filho(a)?

A dose de CBD deve ser determinada e ajustada individualmente pelo médico, com base na condição clínica, peso do paciente, resposta ao tratamento e possíveis interações medicamentosas. O tratamento geralmente inicia com doses baixas, que são gradualmente aumentadas.

Conclusão

O CBD representa um avanço significativo no tratamento de epilepsias refratárias como as Síndromes de Dravet, Lennox-Gastaut e o Complexo da Esclerose Tuberosa, oferecendo uma opção terapêutica validada por evidências científicas robustas. No entanto, é fundamental que seu uso seja guiado por uma prescrição médica rigorosa, considerando a dose adequada, o monitoramento de segurança e a escolha de produtos de qualidade certificada. O conhecimento das interações medicamentosas e dos potenciais efeitos adversos é crucial para garantir a segurança do paciente. O CBD não é uma cura, mas uma ferramenta importante que, quando utilizada corretamente, pode melhorar significativamente a qualidade de vida de muitos pacientes.

Leituras recomendadas

  • Pilar: Segurança e Interações do CBD
  • Pilar: Regulação do CBD no Brasil
  • Guia: Como ler rótulos e laudos (COA)