CBD aprovado para epilepsias raras: indicações, dose e segurança
A aprovação do canabidiol (CBD) pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) representou um marco significativo para pacientes com formas graves e raras de epilepsia no Brasil. Este artigo explora as indicações comprovadas do CBD, as considerações sobre sua dosagem e, crucialmente, o perfil de segurança que acompanha seu uso, sempre sob rigorosa orientação médica. Nosso objetivo é oferecer informações baseadas em evidências para pacientes, familiares e profissionais de saúde.
Como o CBD teoricamente atua
- O canabidiol interage de maneira complexa com o sistema nervoso central, diferente de outros canabinoides como o THC, pois não possui efeitos psicoativos diretos. Sua ação no cérebro é multifacetada e não totalmente compreendida, mas envolve várias vias:
 - **Modulação do Sistema Endocanabinoide:** O CBD não se liga diretamente aos receptores canabinoides CB1 e CB2, mas pode influenciar a atividade de enzimas que metabolizam os endocanabinoides (nossos canabinoides naturais), aumentando a disponibilidade de anandamida, um endocanabinoide com propriedades anticonvulsivantes.
 - **Interação com Receptores de Serotonina (5-HT1A):** O CBD atua como agonista parcial em receptores de serotonina, o que pode contribuir para seus efeitos ansiolíticos e neuroprotetores, impactando indiretamente a excitabilidade neuronal.
 - **Modulação de Receptores TRPV1 (Transient Receptor Potential Vanilloid 1):** Estes receptores estão envolvidos na regulação da dor, inflamação e temperatura corporal. A ativação pelo CBD pode ter efeitos neuroprotetores e anticonvulsivantes.
 - **Atividade Antagonista em Receptores GPR55:** O GPR55 é considerado um “receptor canabinoide órfão” e sua ativação está associada ao aumento da excitabilidade neuronal. O CBD pode bloquear este receptor, contribuindo para a redução de crises.
 - **Mecanismos Antioxidantes e Anti-inflamatórios:** O CBD possui propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias que podem proteger neurônios do dano oxidativo e reduzir a neuroinflamação, fatores que podem exacerbar a epilepsia.
 
O que está COMPROVADO
Atualmente, o canabidiol de grau farmacêutico, como o Epidiolex® (marca registrada do CBD aprovado pela Anvisa e agências internacionais), possui evidências robustas e aprovação para o tratamento adjuvante de crises epilépticas associadas a síndromes raras e graves, refratárias a outros tratamentos. As principais indicações com evidência de Nível 1 (baseadas em ensaios clínicos randomizados e controlados por placebo) são:
*   **Síndrome de Lennox-Gastaut (SLG):** Uma forma severa de epilepsia infantil caracterizada por múltiplos tipos de crises e retardo no desenvolvimento. Ensaios clínicos, como o conduzido por Devinsky et al. (2018) publicado no New England Journal of Medicine, demonstraram redução significativa na frequência de crises de queda em pacientes com SLG.
*   **Síndrome de Dravet (SD):** Uma encefalopatia epiléptica grave, de início na primeira infância, associada a crises prolongadas e refratárias. Estudos como o de Devinsky et al. (2017), também no New England Journal of Medicine, confirmaram a eficácia do CBD na redução da frequência de crises convulsivas nesta população.
*   **Complexo da Esclerose Tuberosa (CET):** Uma condição genética que causa tumores benignos em vários órgãos, incluindo o cérebro, levando a epilepsia refratária. O ensaio clínico GWPCARE6, publicado na Lancet Neurology por Thiele et al. (2020), evidenciou a eficácia do CBD na redução das crises associadas ao CET.
Nestes casos, o CBD tem sido uma opção terapêutica valiosa, especialmente para pacientes que não responderam a múltiplos anticonvulsivantes tradicionais. É crucial ressaltar que a dose deve ser individualizada e titulada pelo médico assistente, geralmente começando baixa e aumentando gradualmente até a dose eficaz ou máxima tolerada.
O que está EM ESTUDO
- Embora a aprovação para epilepsias raras seja um grande avanço, a pesquisa sobre o CBD e outras condições neurológicas ou psiquiátricas é vasta e contínua, com muitos estudos em andamento para explorar novas aplicações e aprimorar o entendimento de seu mecanismo de ação:
 - **Outras formas de epilepsia:** Há estudos investigando o potencial do CBD em outras síndromes epilépticas refratárias, como a Síndrome de Doose (epilepsia mioclônica atônica) e a Epilepsia com Crises Mioclônico-Astáticas, embora as evidências ainda não sejam tão robustas quanto para SLG, SD e CET.
 - **Transtornos do Espectro Autista (TEA):** Ensaios clínicos exploram a capacidade do CBD de modular sintomas associados ao TEA, como irritabilidade, agressividade e distúrbios do sono, que frequentemente coexistem com a epilepsia.
 - **Doença de Parkinson e Doença de Alzheimer:** Hipóteses sobre os efeitos neuroprotetores, anti-inflamatórios e antioxidantes do CBD impulsionam pesquisas sobre seu papel potencial na desaceleração da progressão dessas doenças neurodegenerativas e no manejo de sintomas não motores.
 - **Ansiedade e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT):** Ensaios preliminares e estudos pré-clínicos sugerem que o CBD pode ter propriedades ansiolíticas, justificando investigações sobre seu uso em transtornos de ansiedade e TEPT.
 - **Biomarcadores e farmacogenômica:** Pesquisas buscam identificar biomarcadores que possam prever a resposta ao tratamento com CBD, permitindo uma medicina mais personalizada e otimizando a seleção de pacientes que mais se beneficiarão.
 - Apesar do entusiasmo, muitos desses estudos ainda estão em fases iniciais ou intermediárias, e as evidências ainda não são consideradas suficientes para recomendações clínicas generalizadas.
 
Segurança e interações
Efeitos adversos
- Sonolência ou sedação
 - Diarreia
 - Fadiga
 - Diminuição do apetite
 - Aumento das enzimas hepáticas (ALT/AST)
 
Monitorização hepática
A elevação das enzimas hepáticas alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST) é um efeito adverso conhecido do CBD, especialmente quando utilizado em altas doses ou em combinação com outros fármacos hepatotóxicos, como o valproato. Por isso, é fundamental a monitorização da função hepática através de exames de sangue periódicos (ALT e AST) antes do início do tratamento e durante o uso, conforme orientação médica, para detectar precocemente qualquer alteração e ajustar a dose ou suspender o tratamento, se necessário.
Interações medicamentosas
O CBD é metabolizado no fígado por enzimas do citocromo P450, principalmente CYP2C19 e CYP3A4. Isso significa que pode interagir com diversos medicamentos que também são metabolizados por essas vias ou que afetam a função hepática. As interações mais relevantes incluem:
*   **Anticonvulsivantes:** Pode aumentar os níveis sanguíneos de outros medicamentos para epilepsia, como clobazam, valproato, topiramato, e rufinamida, elevando o risco de efeitos adversos. O ajuste de dose desses medicamentos pode ser necessário.
*   **Anticoagulantes:** O CBD pode aumentar o efeito de anticoagulantes como a varfarina, elevando o risco de sangramento.
*   **Outros medicamentos:** Teoricamente, pode interagir com benzodiazepínicos, antidepressivos e alguns medicamentos para pressão arterial.
É imprescindível que o paciente informe ao médico sobre todos os medicamentos, suplementos e fitoterápicos que utiliza para que as interações sejam avaliadas.
Populações especiais
- **Idosos:** Embora não haja contraindicações específicas, os idosos podem ser mais sensíveis aos efeitos sedativos do CBD e a interações medicamentosas devido ao uso de múltiplos fármacos. A titulação da dose deve ser mais cautelosa.
 - **Gestantes e Lactantes:** Não há dados suficientes sobre a segurança do CBD na gravidez e lactação. Portanto, seu uso não é recomendado nessas populações, a menos que os potenciais benefícios superem claramente os riscos, e sob estrita supervisão médica.
 - **Crianças:** O CBD de grau farmacêutico é aprovado para crianças a partir de dois anos de idade nas indicações de epilepsias raras. No entanto, o tratamento deve ser sempre iniciado e acompanhado por um neuropediatra ou médico especialista com experiência na prescrição de canabinoides.
 
Uso prático e qualidade do produto
- No mercado, existem diferentes tipos de produtos de CBD, e entender suas características é fundamental para garantir a segurança e eficácia:
 - **Isolado de CBD:** Contém 99% ou mais de canabidiol puro, sem outros canabinoides, terpenos ou flavonoides. É uma opção para quem busca evitar completamente o THC.
 - **Broad Spectrum (Amplo Espectro):** Contém CBD e outros canabinoides, terpenos e flavonoides presentes na planta, mas o THC é removido a níveis indetectáveis. Permite o “efeito entourage” (sinergia entre os componentes da planta) sem o risco de THC.
 - **Full Spectrum (Espectro Completo):** Contém todos os componentes da planta de cannabis, incluindo CBD, outros canabinoides (CBG, CBN, etc.), terpenos, flavonoides e uma pequena quantidade de THC (geralmente abaixo de 0,3% no Brasil e em muitos países). Acredita-se que o “efeito entourage” seja mais pronunciado neste tipo de produto.
 
Regulação no Brasil
No Brasil, a Anvisa tem avançado na regulamentação dos produtos à base de cannabis. A **RDC 327/2019** estabeleceu critérios para a fabricação, importação, comercialização, prescrição, dispensação e monitoramento de produtos de cannabis para fins medicinais. Posteriormente, a **RDC 660/2022** permitiu a importação de produtos derivados de cannabis por pessoas físicas para uso próprio, mediante prescrição médica. É importante destacar que, para as indicações de epilepsias refratárias, o CBD de grau farmacêutico é o que possui evidência clínica robusta e aprovação regulatória, garantindo controle de qualidade, dosagem e pureza. Outros produtos não regulamentados como medicamentos podem ter variações na concentração de CBD, presença de contaminantes e THC em níveis inconsistentes.
Perguntas frequentes
O CBD pode curar a epilepsia?
Não. O CBD, como outros anticonvulsivantes, atua no controle e na redução da frequência das crises epilépticas, mas não oferece uma cura definitiva para a epilepsia. O objetivo é melhorar a qualidade de vida do paciente, minimizando as crises.
O CBD é seguro para todas as idades com epilepsia?
O CBD de grau farmacêutico é aprovado para crianças a partir de dois anos de idade para as epilepsias raras específicas (Lennox-Gastaut, Dravet, CET). Para outras faixas etárias e tipos de epilepsia, o uso deve ser avaliado cuidadosamente pelo médico, considerando os riscos e benefícios.
Qual a diferença entre o CBD medicinal e o CBD recreativo?
O CBD medicinal, como o Epidiolex®, é um produto farmacêutico de alta pureza e padronização, com dosagem precisa e comprovada em ensaios clínicos. O termo “CBD recreativo” é um equívoco; produtos de cannabis para uso recreativo geralmente focam no THC. Produtos de CBD comercializados fora do ambiente farmacêutico podem ter variabilidade na composição e qualidade, não sendo recomendados para fins medicinais sem a devida regulamentação e controle.
Posso dirigir ou operar máquinas enquanto uso CBD?
O CBD pode causar sonolência ou sedação, especialmente no início do tratamento ou com doses mais altas. É aconselhável avaliar como o corpo reage ao medicamento antes de realizar atividades que exijam atenção total, como dirigir ou operar máquinas.
Preciso de receita médica para usar CBD no Brasil?
Sim. Qualquer produto à base de cannabis para fins medicinais no Brasil, incluindo o CBD, exige prescrição médica por um profissional devidamente habilitado. A automedicação com CBD não é segura e pode mascarar condições subjacentes ou causar interações medicamentosas.
Conclusão
A aprovação do canabidiol para epilepsias raras representa um avanço significativo na neurologia, oferecendo esperança para pacientes com condições severas e refratárias. Embora seja uma ferramenta terapêutica valiosa para síndromes como Lennox-Gastaut, Dravet e Complexo da Esclerose Tuberosa, é fundamental lembrar que seu uso exige acompanhamento médico rigoroso para ajuste de dose, monitorização de efeitos adversos, especialmente hepáticos, e manejo de potenciais interações medicamentosas. A pesquisa continua expandindo nosso entendimento sobre o CBD, mas a prudência e a abordagem baseada em evidências devem sempre guiar as decisões clínicas. Para qualquer dúvida ou consideração sobre o tratamento, procure sempre um médico especialista.
Leituras recomendadas
- Pilar: Segurança e Interações do CBD
 - Pilar: Regulação do CBD no Brasil
 - Guia: Como ler rótulos e laudos (COA)
 
